Diário da Rússia

Roberto Fendt

Stultifera Navis

Fui entrevistado pela Globonews. O tema foi o desdobramento dessa crise que não quer nos deixar

O Fundo Monetário Internacional acaba de reduzir a sua projeção de crescimento da economia mundial em 2012, dos anteriores 4% para mais sóbrios 3,3%. Com base nessa redução, agora o temor é de que estejamos nos encaminhando para uma deflação, situação inversa à da inflação, com os preços em queda persistente e generalizada. Se a zona do euro entrar em deflação, aumentam os riscos para a retomada da economia mundial.

Vivemos um período em que as taxas de juros nos principais mercados estão muito próximas de zero. O Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, anunciou sua intenção de manter a meta da taxa básica americana em 0,25% até 2014. A taxa já está nesse patamar desde a crise de 2008, após a quebra do banco de investimentos Lehman Brothers, sem que essa medida fosse capaz de estimular o consumo das famílias e o investimento das empresas.

Tivesse ocorrido uma aceleração da inflação em resposta ao mar de liquidez jogado nos mercados pelos bancos centrais e mantidas as taxas de juros próximas de zero, se teria criado um formidável instrumento para a recuperação dos preços dos ativos e a retomada do investimento, já que a taxa real de juros (descontada a inflação) seria negativa.

Como tal não aconteceu, permaneceram retraídos consumo e investimento nas economias avançadas. O instrumento monetário serviu apenas para evitar o mal maior de uma quebradeira do sistema financeiro mundial.

Diriam alguns que esse é o caminho de ajuste necessário para superar a crise. Ela se iniciou depois de um investimento excessivo em bens de raiz e ativos financeiros, incentivado pelos governos. Foram construídas mais residências do que seria recomendável, dada a capacidade de pagamentos dos mutuários. A solução agora, que as casas estão prontas, é esperar que seus preços caiam tanto que haja novamente compradores interessados em adquiri-las e capazes de pagar por elas.

Observe-se que esse diagnóstico é distinto da análise que orienta a política econômica na maioria dos países desenvolvidos. Lá, os governos não estão interessados em ficar de braços cruzados esperando que os preços dos ativos caiam o suficiente para que o estoque existente encontre compradores.

Esse processo pode levar muitos anos, e o ciclo eleitoral é mais curto. Por essa razão, tanto o governo americano como, agora, os governos europeus decidiram combater o mal injetando liquidez suficiente nas economias para recuperar os preços dos ativos.

Se é da natureza do processo político nas democracias que os governos intervenham nos mercados, de olho mais em suas agendas que nos interesses dos consumidores e investidores, essa intervenção vem levantando questionamentos a respeito do tipo de capitalismo que temos.

Não se trata de indagações que partem apenas de libertários, cada vez mais preocupados com as ameaças à liberdade decorrentes do gigantismo e ativismo dos governos.

Empresários e acadêmicos, reunidos na aprazível e cara Davos, vociferam contra o capitalismo que temos. Infelizmente, por razões diversas, muitas dessas críticas – e as correspondentes recomendações – servem apenas para piorar o que já temos.

Exemplo disso foi o elogio do capitalismo de Estado praticado na América Latina, onde desaparece por definição o risco do empreendimento – sem o correspondente desaparecimento do lucro, apropriado Deus sabe como e por quem.

Em nenhum momento, pelo menos até agora, mencionou-se que o problema com o capitalismo é que não se deixa ele funcionar. No capitalismo, também chamado de economia de mercado, os preços são o instrumento de democratização das informações sobre a escassez de recursos e oportunidades de investimentos. Mas quase todos os debatedores em Davos querem perverter o sistema de preços, em lugar de deixá-lo funcionar livremente.

Nas economias de mercado, o lucro é a remuneração da tomada de risco em condições de incerteza. O capitalismo de Estado, tão apreciado por alguns na fria Suíça, substitui a tomada de risco pela certeza do lucro, custeado pelos contribuintes.

Em 1494, Sebastian Brant (1458–1521) publicou uma alegoria moral chamada “Stultifera Navis”, a nau dos insensatos, que se valia da imagem do navio a marear como metáfora para a vida. A julgar pelo nível dos debates em Davos, a reunião toda não passa de uma stultifera navis.

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